sábado, 2 de agosto de 2008

Filme noir

Era julho em São Paulo.Chovia forte e feio.A paisagem era ainda mais desagradável do que habitualmente costumava ser.Dentro do carro,parada no sinal as 4 da manhã,ela procurava não dormir,procurava esperança,não enlouquecer de vez.Depois de andar de bar em bar desde as nove da noite,as coisas se confundiam,a noite se parecia com a anterior que se parecia com a anterior e com a anterior e com a próxima.Os cigarros acabaram.Parar em um posto 24 horas,uma loja de conveniência,abastecer o carro e ela.Os amigos já não estavam,se perderam por ruas e moteis e festas particulares.Dentro da loja ,sentada no canto com a aparência de estar ainda mais perdida que ela,havia uma garota,uma perdida.Com uma xícara de café,uma blusa listrada,o cabelo grudado aparentava não ter cuidado nenhum.
-Não se importa de me dar um cigarro?Eu vi que você comprou o último maço de Carlton red.
Ela queria mesmo falar com a 'perdida',e agora era ela quem se aproximava,podia ser sorte,a salvação de uma noite já sem expectativas.
-Pega,eu também não fumo outros.
O silêncio enquanto acendiam os cigarros,e enquanto fumavam,ela gostaria de dizer alguma coisa,mas não queria parecer carente,embora isso fosse evidente.
-Você mora por aqui?
-Eu não sou daqui.
O sotaque já denunciava,mas era preciso confirmar.
-Você pode me dar uma carona?
-Pra onde você vai?
-Pra onde você vai?
Era aquele momento em que a resposta era a chave do que ia acontecer.Pensar rápido a essa hora,ainda meio alta por tudo usado nas horas anteriores não era tarefa fácil.
-Entra.
Ela tirava a jaqueta de couro preta de um jeito essencialmente sedutor,as pernas demasiado brancas na mini-saia que contrastava com o frio da ocasião,as botas altas,o colar e os brincos...tudo era milimetricamente cinematográfico,como num desses filmes noir,em que se diz pouco e as cenas se seguem sem muita coerência temporal.
-Você tem alguma coisa aí?
-Tipo o quê?
-Tava pensando em cocaína.
-Não tenho,mas posso arranjar se você quiser.
-Depois.
-E agora,eu não sei onde te deixar,você não me disse ainda pra onde vai.
-Já disse que vou pra onde você for,não faz diferença.
-Eu vou pra casa.
-Pra mim parece ótimo.
-Eu não te conheço,você ainda nem me disse o seu nome.
-Você não acreditaria ser o meu nome verdadeiro e isso também não faz a mínima diferença.
-Você é sempre assim,misteriosa?
-Só quando eu encontro alguém que não precise saber quem eu sou.
-E o que me faz ser alguém assim?
-Você comprou os cigarros certos.
Outra vez silêncio,outra vez o carro parado no sinal.Os olhares desconfiados de uma,fundos de outra.Um beijo desconfortável que se transforma rapidamente em uma chama perigosa.Enquanto sentia aquela língua quase desconhecida e misteriosa no seu pescoço frio de suor,ela sabia que aquilo iria mudar alguma coisa,e parecia ser bom.O rádio tocava uma coletânea feita por ela,só com músicas para noites de chuva.Last night I dreamt that somebody loved me,dos Smiths,era a trilha do momento.
Mas dessa vez os braços quentes em volta dela não eram falso alarme.O sinal abriu,a sua blusa também.Encostar o carro à beira da calçada enquanto se abre um soutien é mais complicado do que parece,ela pensa.Encontrar alguém que salve a sua vida,ou a sua noite,também é.

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